sexta-feira, 2 de julho de 2010

COQUETEL MOLOTOV

(Que um camelo me leve pra onde existir água - aprendi com os homens azuis)

As paredes mais quietas que o normal, não porque queriam ouvir, temiam o suspense inexplicável que pairava. Se aquele suspense tivesse cheiro diriam que era o feminino (melhor aquietar-se).

No quarto lilás, hormônios adolescentes brincavam e, na algazarra infantil, confundiam tudo.

No quarto azul tinha ela, e nela, ah! nela, o maldito climatério se embandeirava.

A esperança escondia-se no banheiro, cheio de segredos, trancado a mil chaves. Assim que ela tomasse um banho tépido, não, ela não gostava de banhos tépidos, frouxos, tinha que ser quente, muito quente, podia mudar a história de um dia, daquele dia.

Os outros cômodos, incômodos com o que se passava ali, espremiam-se na tentativa de ouvir o som da água que caía. O ar denso e perfumado ia escapulir assim que a porta do banheiro se abrisse, de onde ela poderia sair saltitando até o quarto azul, ou gritando para o quarto lilás.

Parte da casa sentia haver um certo demérito com o que julgavam predileção do banheiro e mais ainda com o alumbramento que vivia no quarto azul, que inocente (?), provocava inveja em todos os outros ambientes. De ares sempre calmos, sempre a exibir-se. Palco de grandes concertos e vasta biblioteca.

A pobre sala, que em dia de paz ,era mais utilizada pela adolescente em função do computador, vivia solitária, pouquíssimas visitas.
Pra completar, uma cadela, ainda virgem, em pleno cio, latindo nervosa ante qualquer ruído.

Ambiente bombástico! Inchado, dolorido.

O que os móveis não entendiam, por mais calados que se fizessem, era por que tudo se repetia sempre, mas como tinham ouvido certa vez: é só deixar o fogo perto da estopa e o diabo vem e assopra.

Na noite anterior, ao deitar-se, ela, sentia o que pressentia na pulsação e na força daquele silêncio que escondia uma receita, velha conhecida. Estava mais cheia que a lua cheia.

O apartamento acordara às 6 horas com o toque do despertador, rotina e rotina, nada além.

A menina deixara seus rastros de desordem por onde passara depois de horas na internet. A desordem era a mesma de outros dias, mas naquele, tinha ares de afronta, de propósito, de intento.

A cadela, no cio, demarcara terreno no meio da sala, pobre sala. Tão ampla, mas tão abandonada.

As paredes do corredor temiam o trajeto que ela faria ao atravessá-lo, indo do quarto pra sala. Sabiam que aquilo não podia dar em águas calmas. A pressão arterial alcançaria o teto, o dia derramaria sangue, menstruaria. Ela tesa, cega, irascível, sem lógica, tomada pela histeria embarcaria na montanha russa enquanto suas carnes, músculos, ossos se partiriam e o líquido, mais inflamável, cobriria um alvo, qualquer alvo.

Mas, em todo caos, sempre uma saída. E, nesta história, a porta que liberta, seria um telefonema, ou um e-mail, marcado em negrito, acalmando as garras daquele dia.

Ela era capaz de lembrar cada palavra do último que recebera: o coração pulsa sangue, só, a alma não me existe. me adore com seu cérebro, é como eu amo você.

Assim fizera: ligara o computador vivendo a expectativa do jogador brasileiro na boca do gol (final da copa:Brasil X Argentina). Pra ela bastaria um bom dia, sem beijos de despedida, um bom dia e ponto. Enquanto olhava a caixa de entrada de mensagens buscava condescendência em alguma lacuna, já que só sabia viver em lacunas e nunca em certezas.

Não tinha e-mail, não houve telefonema. Esperou uma hora, duas horas, eis que na terceira, EXPLODIU!!!!!!!!! Seu último pensamento lúcido foi Ismália (Alphonsus de Guimarães).

O surto começou com ela rasgando as vestes, já nua, arrancou a coleira da cachorra, e, sem titubear, abriu a porta do apartamento e aos gritos clamava: meu cérebro afeta meu coração porque é nele que sinto as coisas, ele dóiiiiiiiiiiiii.

A cachorra, porta aberta, livre das paredes que a aprisionavam, corria, corria, corria, sem olhar pra trás. Um rastro de sangue marcava seus passos.

O primeiro humano a conseguir aproximar-se era um ser não temente, e como o diabo não é tão feio assim como se pinta, conseguiu segurá-la pedindo que acabasse com aquilo de bancar a desesperada. Fez isso esbofeteando-a. Havia aprendido isso em algum lugar, além do que sabia-se um sábio, superior. Fazia tudo com firmezas características. Nunca precisou de Deus.

As certezas dele a desnorteavam ainda mais e o seu grito já era primal, bestial: arranque meu cérebro, ele não funciona. O que dói em mim é o coração.

Ele, aos trancos, respondia: ah dói sim, mas tudo acontece no cérebro, sempre é nele.
[(haviam se encontrado, ele na porta de entrada, ela na de saída (da vida)].

Ele a repetir: tudo é cérebro, tudo é cérebro; Ela a gritar: mas é meu coração que está a sentir, a doer, e não meu cérebro; E ele: mas é no cérebro...

Enquanto isso, paredes e móveis quietos, tristes, tentavam avisar aquele homem sobre o que fazer naquelas crises, mas ele não tinha ouvidos para ouvir paredes e móveis, nem olhos para ver, apenas as próprias certezas.

Mesmo assim, abraçados num feixe, pensavam: vamos insistir, quem sabe ele sai uma única vez de suas vestes e, livre, sua alma, (não sabiam que ele não tinha alma), passa a ouvir os nossos segredos que estão escondidos no silêncio de tudo o que não foi dito. Como num mantra, em uníssono, diziam: leve-a para o quarto azul, coloque a música do Chico e, em suas mãos, um livro do Rilke. Isso a fará acalmar-se e parar de chorar e então, o sangue conseguirá fluir enquanto as lágrimas de sempre lavarão as suas faces transtornadas.

É sempre assim. Ela é assim: insana, demente, transparente, absolutamente impotente, não é preciso força nenhuma para detê-la.

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