segunda-feira, 14 de junho de 2010

LEMBRANÇAS APAGADAS

Para que a menina Clara pudesse respirar livremente era comum esconder-se em cima da casa, sobre o telhado da cozinha, tendo por escada a velha goaibeira do quintal vizinho, que desde cedo derramava todos os galhos para este lado do quintal.

A cerca de madeira, prestes a render-se, era o limite entre os dois quintais. Clara sabia exatamente em qual parte da cerca deveria apoiar-se para alcançar o primeiro galho até atingir aquele que serviria de escorregador levando-a até o telhado. Com agilidade felina, traçava os passos automaticamente e tão rápidos que mal se viam as etapas percorridas por seus pezinhos e mãos, que iam deixando suas marcas na árvore companheira.

Ao atingir o telhado era possível tocar em galhos de uma outra árvore, um pé de laranjeira, cujas folhas tenras ao serem mastigadas, antes de arderem, desprendiam um aroma doce e perfumado.

Nesses momentos a menina Clara suspirava profundo como se quisesse engolir a vida para vomitar uma explicação para o que sentia. Dessa forma, aprendera a “ viver pra dentro” , e era do telhado que sentia a sua alma suspensa, quase ao seu alcance. Seu espírito a empurrava para aquele lugar sempre que sentia um vazio, uma fome.

Os pais de Clara, humildes e honestos, sobrando-lhes poucas chances de exercerem outros adjetivos em suas vidas, viviam como a maioria das famílias pobres em uma cidade de interior, de pouquíssimos habitantes, mas de numerosos filhos. Nessa época, adolescentes não adolesciam, viviam cuidando das próprias feridas e engolindo o choro.

Clara não era a filha mais velha, nem a mais nova, era apenas uma entre muitos filhos. Sem conhecer afeto declarado, aprendera a recolher-se. (Um dia seria diferente e tudo valeria a pena). O decantado futuro estava morando longe e um dia a alcançaria, mas não ali, naqueles dias em que a ordem tinha só a opção de ser seguida. Dias em que, se faltasse a energia elétrica era dia do lampião a gás, se fizesse frio era dia de fogueira acesa no chão da cozinha, se faltasse comida (sempre pouca para tantas bocas), era dia da pensão da dona Maria, vez do sortido fazer parceria com a polenta e encher de alegria o estômago da família.

Clara não sabia como aprendera a ler, a fazer crochê, a jogar baralho, mas sabia o quanto sofrera pra aprender a fumar. Horrível no começo, mas conseguira! Os fatos iam se perdendo em sua memória enquanto os aromas e sabores impregnavam-se naquela alma menina.

Da primeira vez em que entrara em uma igreja para assistir a uma missa, fizera xixi e por conta disso permanecera de joelhos, com vergonha de levantar-se. Mais tarde, na mesma igreja, ao assistir o primeiro casamento, tivera uma crise de choro compulsivo não conseguindo assistir ou entender a cerimônia nem a crise. Porém, nada dizia. Não havia reclamação. Não havia pergunta. Não havia resposta.

Em determinado momento juntara-se à família um gato preto que tinha o rabo mutilado como consequência de uma bomba que meninos colocaram no pobre bichano. A mãe de Clara cuidara do animal por razões nunca ditas. Passaram a chamá-lo de “gatão”. Quando, sem muitas explicações, mudaram-se daquela cidade, não se soube mais do bichano. A menina só se dera conta da ausência do gato depois de adulta, depois de velha.

Nessa história as mortes vieram trágicas, naturais, insuportáveis, dolorosas. Quando foi a vez de perder a mãe, Clara perdeu o chão: mães quando se vão nos levam o chão. Ao receber o primeiro abraço de consolo não suportara o calor que invadiu seu corpo, perdera os sentidos ( não fora acostumada a abraços). Ao voltar a si, sentindo um aroma conhecido, ouvira uma voz a dizer: “ tome este chá, vai sentir-se melhor”.

Antes de abrir os olhos Clara decidiu que ficaria assim por mais um tempo, queria esquecer a cara da morte na cara da mãe. Então, saboreando as lembranças lançadas pelo aroma, suspirou bem fundo e, numa epifania, viu a sua alma a lhe sorrir enquanto afagava um gato distinto e preto.

3 comentários:

  1. Eu achei TUDO: Lindo, triste, emocionante, chocante, íntimo e pessoal...
    ADOREI.
    BJS
    Marcia

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  2. Nossa, mãe....estou sem palavras. É muito emocionante saber que a Clara é você. Ao mesmo tempo que sinto pena pela sua história difícil, sinto um orgulho enorme pela mulher "PORRETA" que se tornou! Parabéns pelo dom de ser quem você é!

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  3. Que lindo! Este estilo é novo mas não menos inteligente e contagiante como td que vc escreve. Parabéns.

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